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sábado, 11 de julho de 2020

AQUELE CAZUZA

                                                                                                                                                                                                                                                                     
          

                                                                                                                            por Francisco Galindo
         A fraternidade de Focauld sugere “certo bom humor para mexer-nos convenientemente pela vida”. É uma sugestão. Dos centros metropolitanos mais azedos até as mais tediosas e poeirentas cidades do Brasil, somos por vezes além da conta, infindas multidões de ressentidos, chatos e frustrados senhores.
            Reis da gastrite nervosa, fregueses de psicologices, gostamos de certa confusão ocidental. Fiéis aos estereótipos, temos medo de sermos felizes, contra o que já se insurgiu num tempo decente, uma frente política brasileira. A morte de Cazuza- ainda que já bem distante- mexeu com isso. O cara rompeu espécie de pacto com a mediocridade. Ficou rindo até não poder mais, esticando músculos da cara magra. Sem bochechas bojudas, fartou-se de brilho em cada olho. Quando a mídia partiu-lhe em encalço, meio abutre querendo carne e sangue, reagiu. Nada de vitrine com agonizante exótico. Nada de paixões letais, espetáculo de compaixão. O sofrimento entre os patrícios é visceral. E é, para milhões de casos, algo instalado que de tanto ficar vai fazer falta se desaparecer. Esta tendência pode vir dos monges que não riam na terra de Santa Cruz, que merecíamos fosse terra da santa ressurreição com toda sua festa. Pode vir da esquerda laica, ferida de sangue. Sob açoites de cilício ou pau-de-arara o corpo internalizou o algoz e seus censores internos recusam alegria. Até quando os ratinhos, em face do pão sem choque, da possibilidade de riso sem tortura, dirão que não querem cair em tentação?
            Muito cara de pau aquele Cazuza. Sua alegria foi grosseira, acintosa. Seu recado final de disposição pela vida foi sua carraspana mais complexa e mais eloquente. Pacientes terminais são muitas vezes cobaias das técnicas de prolongamento de sobrevida. Não se protege e defende o direito de adição do desejo, da prerrogativa do prazer. Gasta-se o esforço hipócrita de salvar a vida matando-se o prazer. A alegria daquele Cazuza teve sabor de disparate, encrenca comprada até a última hora. Ninguém vai poder fazer- a partir daquele Cazuza- a apologia moralista que combina necessariamente gozo e risco, prazer e peso de consciência. Aquele Cazuza resistiu e morreu num campo bom de briga.  A aids o matou, qual o problema? Mais gente terá sofrido com a sua valentia. Os que se aproximam de doenças, dando-lhes valores míticos e nulidade ontológica. Mais gente terá sofrido. Os que silenciam frente à expansão autoritária do poder médico-institucional ou reinvestidas de sacristias sisudas.
            Doente mal comportado. Com raiva de paninhos brancos, mãozinhas no álcool e “não perturbe” em inglês. Puto com quartos de reclusão, confisco hospitalar e sussurros respeitosos. Viva a vida virótica, a vida erótica, errática, viva a vida virou. A morte tem aplauso de ninguém. Sem plateia, indesejada, ninguém pede bis. Coisa vencida, digna de melhor zombaria. Aquele Cazuza riu-se dela. Fez-lhe caretas. Bateu no peito, do lado que bate vida e afirmou a eternidade. Agenor de Araújo e de todos. Um cara.
           





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